Quatro em
cada cinco decisões judiciais sobre troca de depósitos judiciais por
seguro garantia são contrárias aos contribuintes. Essa proporção tem
base em levantamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)
nos cinco Tribunais Regionais Federais (TRF) do país. Até quarta-feira
haviam sido registrados 45 pedidos – 38 tiveram decisões de segunda
instância favoráveis à União e apenas sete beneficiaram as empresas.
A questão é importante. Estão em jogo R$
167,5 bilhões. Esse dinheiro está distribuído em cerca de oito mil
processos com depósitos no país. Se houver permissão para mexer nessa
quantia, afirma a PGFN, o cofre público será afetado e haverá impacto na
apuração do resultado primário da União.
Isso ocorre porque o governo federal
utiliza esses recursos. Os valores dos depósitos ficam disponíveis na
Conta Única do Tesouro Nacional e são considerados como parte do
orçamento. É assim desde a edição da Lei nº 9.703, de 1998.
“Está incorporado ao orçamento. É usado,
por exemplo, para a execução de políticas públicas. Se for retirado, o
desfalque será gigantesco”, diz o procurador Manoel Tavares Netto,
coordenador-geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional.
“As soluções têm que ser sistêmicas. Não
para um ou outro contribuinte. O Executivo é quem está legitimado para
tratar da política econômica e tem adotado medidas para proteger as
empresas”, acrescenta.
Antes da pandemia da covid-19, pedidos
de clientes para levantar os depósitos eram vistos pelos advogados como
uma “missão impossível”. Há jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) que beneficia a Fazenda Nacional. Depois da crise, foram
proferidas pelo menos duas decisões contrárias aos contribuintes, pelos
ministros Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães.
As empresas passaram a enxergar esses
depósitos como uma possibilidade de reforçar o caixa e os pedidos ao
Judiciário passaram a ser frequentes. Especialmente depois de uma
decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do dia 27 de março, que
validou a substituição dos depósitos em julgamento de uma resolução do
Conselho Superior da Justiça do Trabalho que dificultava o uso do seguro
garantia e da fiança bancária.
A maioria dos desembargadores, no
entanto, vem entendendo que o posicionamento do CNJ não se aplica às
questões tributárias. Os magistrados se apegam ao artigo 1º da Lei nº
9.703 – a mesma norma que direcionou os depósitos à Conta Única do
Tesouro Nacional. Nesse dispositivo consta que os levantamentos só podem
ser feitos após o trânsito em julgado do processo, ou seja, quando não
houver mais a possibilidade de recursos.
O procurador Manoel Tavares Netto chama a
atenção que essa norma foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
no ano de 2010 e que os ministros decidiram, de forma unânime, pela
constitucionalidade (ADI 1933).
“A Lei nº 9.703 é essencial em qualquer
conversa sobre levantamento de depósito judicial, com ou sem covid-19”,
afirma James Siqueira, procurador-chefe da Divisão de Acompanhamento
Especial da PGFN em São Paulo. No Estado, há 18 decisões favoráveis à
União e duas desfavoráveis. A atuação da procuradoria está concentrada
na segunda instância. “Nossa preocupação é não deixar o dinheiro ser
levantado”, diz.
Segundo Juliana Furtado,
procuradora-adjunta de Defesa da 3ª Região, a atuação de todos tem que
ser coordenada nesse momento, senão o orçamento público não consegue
responder ao que está sendo exigido.
As empresas alegam dificuldade
financeira com a crise e tentam liberar quantias volumosas. Um pedido da
Sky Brasil, por exemplo, envolve meio bilhão de reais (processo nº
0009719-73.2007.4.03.6100). A vice presidente do TRF da 3ª Região (SP e
MS), Consuelo Yoshida, que julgou esse caso, citou a Lei nº 9.703 e
decisão do ministro Mauro Campbell Marques que negou pedido semelhante
em março (TP 2649). Ele também aplicou a lei e nem entrou no mérito da
pandemia, diferentemente da ministra Assusete.
Ao negar pedido da Positivo Tecnologia, a
ministra disse que o levantamento de depósitos sem decisões transitadas
em julgado pode comprometer o uso dos valores pelo poder público em
políticas sociais e medidas econômicas. Ela ainda considerou que, no
site destinado a investidores, a Positivo postou mensagem indicando
“posição de caixa sólida” (REsp 1717330). Ela também se baseou na Lei nº
9.703/98.
Para advogados, no entanto, essa lei não
é soberana, nem precisa ser aplicada a qualquer custo e em qualquer
ocasião pelos juízes. Maurício Faro, sócio do BMA Advogados, diz que um
dos fundamentos usados pelo STF para declarar a constitucionalidade da
Lei nº 9.703 foi o de que a norma não fere a autonomia do Judiciário.
“Então, não dá para vincular o juiz ao
trânsito em julgado para o levantamento dos depósitos. Se determinada
essa vinculação, consequentemente se estará dizendo que ele não tem
autonomia sobre esse dinheiro e, por conclusão, se estará indo contra o
argumento que foi fundamental para a declaração de constitucionalidade
da lei”, afirma Faro.
Para Cassio Gama Amaral, sócio do
escritório Mattos Filho, o argumento da Fazenda Nacional sobre o
desfalque no orçamento não é o mais adequado quando se pensa no direito
do contribuinte. A liberação dos valores, diz, é relevante pela
possibilidade de auxiliar trabalhadores hipossuficientes. ”Quem precisa
mais do dinheiro? O trabalhador desempregado ou o Tesouro, que tem
solvabilidade por natureza?”
Ele pondera que não são todas as
empresas que farão esse tipo de pedido ao Judiciário. Para conseguir
contratar seguro garantia ou fiança bancária, acrescenta, as companhias
precisam estar bem patrimonialmente ou ter boa perspectiva para o
futuro.
Mas, de fato, não tem sido fácil para o
contribuinte nos tribunais. Eduardo Kiralyhegy, sócio do escritório NMK
Advogados, fez uma análise da jurisprudência atual do TRF da 4ª região,
no sul do país, e diz que é preciso separar esse tema em duas
discussões. Uma relacionada aos processos que são ajuizados pelos
contribuintes para questionar determinado tributo e a outra relativa às
execuções fiscais.
Na primeira situação, o contribuinte faz
depósitos mensais. Em vez de pagar o tributo que considera indevido,
ele deposita tais valores em conta judicial. Nesses casos, afirma
Kiralyhegy, o veto unânime. O argumento dos desembargadores é o de que
não há previsão legal – diferentemente dos casos de execução e penhora.
Há brechas, diz, na segunda situação,
referente às execuções fiscais. “Temos visto uma flexibilização da
jurisprudência quando há um motivo forte, que não seja somente a
situação geral do país”, afirma Kiralyhegy. “Se não houver comprovação
da incapacidade da empresa de honrar com compromissos relevantes, como
folha de salários ou o pagamento de fornecedores estratégicos, o pedido
não é deferido.”
O advogado cita decisões do
desembargador Roger Raupp Rios que permitiram o levantamento dos
depósitos por empresas que demonstraram estar enfrentando esse tipo de
dificuldade. Existem ao menos duas (processos nº
5034000-25.2019.4.04.0000 e nº 5014065-62.2020.4.04.0000).
Fonte: Valor Econômico – 4 de maio de 2020.