segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Distinção entre decadência e prescrição no Direito Civil e no Direito Tributário


                    O problema da distinção entre decadência e prescrição é tão antigo quanto os próprios institutos, que surgiram no Direito Romano. A doutrina civilista há muito tempo vem tentando encontrar um consenso que seja satisfatório e que convença a comunidade jurídica, mas ainda hoje perdura a distinção pelo efeito da extinção do direito e da extinção da ação.
                   A discussão teve início nas lições de Agnelo Amorim Filho, professor da Faculdade de Direito da Paraíba, grande estudioso do tema no âmbito do Direito Privado. Sua análise à luz do Código Civil de 1916 e suas lições, baseadas nas teorias de Giuseppe Chiovenda tornaram-se clássicas.  Seus pensamentos sobre prescrição e decadência foram publicados em outubro de 1960 na Revista dos Tribunais, v. 300. A análise foi eminentemente científica, advertiu em seu texto que a distinção doutrinária da época considerava apenas o efeito, ou seja, a prescrição extingue a ação e a decadência o direito, e que, apesar da importância, não atribuía grau de cientificidade ao instituto. A inquietação cientifica do autor teve início após uma publicação de Câmara Leal, que dizia ter encontrado um “critério seguro” para a distinção entre prescrição e decadência. De acordo com Câmara Leal:

 É de decadência o prazo estabelecido, pela lei ou pela vontade unilateral ou bilateral, quando prefixado ao exercício do direito pelo seu titular. E será de prescrição quando fixado, não para o exercício do direito, mas para o exercício da ação que protege. [...] Portanto, para se saber se o prazo criado para a ação é de decadência ou de prescrição basta indagar se a ação constitui, em si, o exercício do direito, que lhe serve de fundamento, ou se tem por fim proteger um direito, cujo exercício é distinto do exercício da ação. No primeiro caso, o prazo é extintivo do direito e o seu decurso produz a decadência; no segundo caso, o prazo é extintivo da ação e o seu decurso produz a prescrição[1].

                   As lições de Câmara Leal foram adotadas por doutrinadores como Washington de Barros Monteiro[2] e Orlando Gomes[3], que discordaram do posicionamento de Agnelo Amorim Filho, para quem a teoria acima falhava por falta de critério científico dando lugar a um critério empírico. 
                 Após analisar as lições de Câmara Leal e com elas não concordar, Agnelo Amorim Filho, foi buscar na doutrina chiovendiana a classificação dos direitos, mais precisamente na divisão binária do direito subjetivo. A teoria divide o direito subjetivo em duas classes: direito potestativo e direito a uma prestação. Sendo direitos potestativos “aquêles que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sôbre situações jurídicas de outras, sem o concurso da vontade destas”[4], e direitos a uma prestação “aquêles direitos que têm por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma prestação, positiva ou negativa, de outrem, isto é, do sujeito passivo”. Ou seja, o primeiro independe do concurso de vontade da outra parte da relação; o segundo depende do ato do outro sujeito da relação.
                   O direito de prestação, uma vez que depende do ato de outro sujeito da relação, pode ser objeto da violação. Em seu turno, o direito potestativo, uma vez que independe do concurso de vontade do sujeito passivo, não pode ser objeto de violação. Assim, diante de violação de direito subjetivo, o meio cabível contra a violação é a tutela jurisdicional promovida pelo Poder Judiciário.  
                   Aplicando o que chamou de “carga de eficácia da sentença”, Agnelo Amorim Filho, dizia que quando se tem o direito e sua consequente violação nasce o direito de ação. A ação é a norma processual que serve de instrumento para violação de direitos. Essa tutela tem um limite temporal chamado “prescrição”. Apenas as ações que visam reparar um direito violado se sujeitam ao regime da prescrição. Por isso, apenas as ações condenatórias prescrevem. O prazo prescricional, segundo o autor, está ligado a uma lesão de direito. Se não são todas as ações que estão ligadas à lesão de direito, não se pode dizer que todas as ações sofrem apenas prazo prescricional. 
                   Em seu turno, se uma ação não vem reparar uma lesão, o prazo que a subordina é de decadência, não de prescrição. O prazo de decadência concorre contra o reconhecimento de um direito que não sofreu lesão. Alguns direitos não necessitam da via judicial para seu conhecimento, os quais são os chamados “direitos potestativos” (ou facultativos); mas quando necessitarem, deverão se socorrer da via da ação constitutiva. As ações constitutivas criam, extinguem ou modificam um estado jurídico, são meio de defesa dos direitos que não são passíveis de violação, estando subordinadas a um prazo de decadência. 
                   Por fim o autor afirma que não poderiam as ações declaratórias estar ligadas a prazos prescricionais ou decadenciais. Conclui, outrossim, que tais ações são perpétuas ou imprescritíveis[5], visto que a certeza jurídica não se subordina a limites temporais.
                      A teoria do autor não pode ser ignorada. Suas conclusões elevaram o nível da discussão sobre decadência e prescrição. Mas, de acordo com as premissas desse trabalho, vamos sair em defesa de que a constituição do crédito, bem como sua exigibilidade, é um dever jurídico, e não do direito potestativo (faculdade). Mesmo não negando sua contribuição e sabendo que no Direito Tributário muitos autores a prestigiam[6].

Cumpre-nos destacar a importante contribuição dos teóricos do Direito Privado classificados como civilistas, mas, sobretudo, sabemos que o direito é uno e indivisível e apenas sofre separação para aprofundamento do objeto de estudo. Partindo dessa premissa, parece leviano dizer que prescrição e decadência no direito tributário não se confundem com aquela positivada no direito privado.
Apesar da proibição de limitação na definição, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas positivadas pelo direito privado que enuncia os comandos do artigo 110 do CTN, entendemos que não se aplica às normas referentes à decadência e prescrição que não têm como objetivo limitar ou definir competência tributária, a teor do citado artigo, e sim regulamentar o fim do tempo no Direito para garantir segurança jurídica ao sistema que é instrumento de harmonia e previsibilidade para as relações. Essa é a interpretação correta do artigo 110, como arremata Heleno Taveira Tôrres[7]:

Contudo, no mais profundo equívoco, muitos autores imaginam que este artigo serviria a uma interferência na interpretação e aplicação das leis tributárias. Inversamente, presta-se, sim, aos limites da intervenção legislativa no exercício de competências tributárias.
                  
                   Desse modo, podemos afirmar, de acordo com nossas premissas, que os institutos da decadência e da prescrição do direito civil não possuem semelhança alguma com esses que aqui estamos tratando.
                   Ademais o art. 109 do CTN também esclarece que “os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”. No direito tributário, vale notar, existe apenas um denominador comum entre os dois institutos que irá extinguir-se com a aplicação das normas de decadência e prescrição, qual seja, o crédito tributário, assim haverá extinção do crédito tributário e de toda a obrigação tributária, seja no instituto da decadência, seja no instituto da prescrição, conforme o art. 156, V do CTN. Efeito distinto do estabelecido pelo Direito Civil.
                   Vale aqui retomar os comentários perfilhados na parte geral desta obra, em que afirmamos que a figura da decadência e da prescrição não é um conceito lógico-jurídico, e sim jurídico positivo[8]. O efeito extintivo foi positivado para garantir segurança jurídica ao sistema, enfatizando seus efeitos de desaparecimento, fim, perda da juridicidade do crédito tributário, deixando de ser crédito tributário.
                   No direito civil a prescrição, por ser instituto de ordem pública, apresenta uma característica notável: a renúncia da prescrição só pode ser efetuada depois de decorrido todo o seu prazo e se não houver prejuízo de terceiros; o prazo de decadência pode ser estabelecido também pela vontade das partes, tornando inclusive renunciável, dentre outras[9]. Sem mencionar disposições próprias como prescrição aquisitiva, em que os fatores de inércia temporal geram uma aquisição de direito real, que não existe no Direito Tributário.
                   Ademais, a doutrina civilista classifica os prazos prescricionais em duas modalidades, a saber: os ordinários (artigo 205 e 206 do Código Civil) e os especiais (são os demais estabelecidos de acordo com a matéria com os quais se relacionam e os demais disseminados em todo texto do Código Civil). Apenas a título de comentário, nota-se que, merecidamente, a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil, tornou o instituto mais objetivo e taxativo, mas ainda assim sua complexidade supera àquela encontrada no direito tributário.
                   Enfim, não há como negar a notória diferença entre os institutos da decadência e da prescrição, considerando a definição do Direito Civil e do Direito Tributário. Igualmente percebe-se quando a consideração das diferenças destaca o efeito extintivo atribuído aos institutos que são conceitos jurídico-positivos como afirmamos ao longo do texto e não possuem os mesmos efeitos comparando o direito civil e o direito tributário por falta de positivação jurídica.



[1] LEAL, A. L. da Câmara. Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 10-137. 
[2] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 287.
[3] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 536.
[4] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 49, n. 300, p. 7-37, out. 1960, p. 9.
[5] Ibidem, p. 31.
[6] CARRAZZA, 2010, p. 344: “Só decai direitos potestativos, vale dizer, daqueles que a lei confere a determinadas pessoas, para que, mediante declaração universal de vontade, alteram situações jurídicas que envolvem terceiros”. E ainda, MACHADO, 2011, p. 220: “A distinção entre decadência e prescrição na Teoria Geral do Direito fica mais clara quando partimos da distinção entre o direito potestativo e o direito a uma prestação”.  
[7] TÔRRES, Heleno Taveira. Interpretação e integração das normas tributárias: reflexões críticas. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 137.
[8] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 6, p. 100.
[9] SOUZA FILHO, Luciano Marinho de Barros e. Da prescrição e da decadência na cobrança de contribuições previdenciárias decorrentes de reclamatórias e consignatórias trabalhistas. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 171, p. 71-78, dez. 2009, p. 72.