O
problema da distinção entre decadência e prescrição é tão antigo quanto os
próprios institutos, que surgiram no Direito Romano. A doutrina civilista há
muito tempo vem tentando encontrar um consenso que seja satisfatório e que convença
a comunidade jurídica, mas ainda hoje perdura a distinção pelo efeito da extinção do direito e da
extinção da ação.
A
discussão teve início nas lições de Agnelo Amorim Filho, professor da Faculdade
de Direito da Paraíba, grande estudioso do tema no âmbito do Direito Privado. Sua
análise à luz do Código Civil de 1916 e suas lições, baseadas nas teorias de Giuseppe Chiovenda tornaram-se
clássicas. Seus pensamentos sobre
prescrição e decadência foram publicados em outubro de 1960 na Revista dos Tribunais, v. 300. A análise
foi eminentemente científica, advertiu em seu texto que a distinção doutrinária
da época considerava apenas o efeito, ou seja, a prescrição extingue a ação e a decadência o direito, e que, apesar
da importância, não atribuía grau de cientificidade ao instituto. A inquietação
cientifica do autor teve início após uma publicação de Câmara Leal, que dizia
ter encontrado um “critério seguro” para a distinção entre prescrição e
decadência. De acordo com Câmara Leal:
É de decadência o prazo estabelecido, pela lei
ou pela vontade unilateral ou bilateral, quando prefixado ao exercício do
direito pelo seu titular. E será de prescrição quando fixado, não para o
exercício do direito, mas para o exercício da ação que protege. [...] Portanto,
para se saber se o prazo criado para a ação é de decadência ou de prescrição
basta indagar se a ação constitui, em si, o exercício do direito, que lhe serve
de fundamento, ou se tem por fim proteger um direito, cujo exercício é distinto
do exercício da ação. No primeiro caso, o prazo é extintivo do direito e o seu
decurso produz a decadência; no segundo caso, o prazo é extintivo da ação e o
seu decurso produz a prescrição[1].
As
lições de Câmara Leal foram adotadas por doutrinadores como Washington de
Barros Monteiro[2] e
Orlando Gomes[3], que
discordaram do posicionamento de Agnelo Amorim Filho, para quem a teoria acima falhava
por falta de critério científico dando lugar a um critério empírico.
Após analisar as lições de Câmara Leal e com
elas não concordar, Agnelo Amorim Filho, foi buscar na doutrina chiovendiana a
classificação dos direitos, mais precisamente na divisão binária do direito
subjetivo. A teoria divide o direito subjetivo em duas classes: direito potestativo e direito a uma prestação. Sendo direitos potestativos “aquêles que a lei confere
a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sôbre
situações jurídicas de outras, sem o concurso da vontade destas”[4], e
direitos a uma prestação “aquêles
direitos que têm por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma
prestação, positiva ou negativa, de outrem, isto é, do sujeito passivo”. Ou
seja, o primeiro independe do concurso de vontade da outra parte da relação; o
segundo depende do ato do outro sujeito da relação.
O direito de prestação, uma
vez que depende do ato de outro sujeito da relação, pode ser objeto da violação.
Em seu turno, o direito potestativo, uma
vez que independe do concurso de vontade do sujeito passivo, não pode ser
objeto de violação. Assim, diante de violação de direito subjetivo, o meio
cabível contra a violação é a tutela jurisdicional promovida pelo Poder
Judiciário.
Aplicando o que chamou de
“carga de eficácia da sentença”, Agnelo Amorim Filho, dizia que quando se tem o
direito e sua consequente violação nasce o direito de ação. A ação é a norma
processual que serve de instrumento para violação de direitos. Essa tutela tem
um limite temporal chamado “prescrição”. Apenas as ações que visam reparar um
direito violado se sujeitam ao regime da prescrição. Por isso, apenas as ações
condenatórias prescrevem. O prazo prescricional, segundo o autor, está ligado a
uma lesão de direito. Se não são todas as ações que estão ligadas à lesão de
direito, não se pode dizer que todas as ações sofrem apenas prazo
prescricional.
Em seu turno, se uma ação não
vem reparar uma lesão, o prazo que a subordina é de decadência, não de
prescrição. O prazo de decadência concorre contra o reconhecimento de um
direito que não sofreu lesão. Alguns direitos não necessitam da via judicial
para seu conhecimento, os quais são os chamados “direitos potestativos” (ou
facultativos); mas quando necessitarem, deverão se socorrer da via da ação
constitutiva. As ações constitutivas criam, extinguem ou modificam um estado
jurídico, são meio de defesa dos direitos que não são passíveis de violação,
estando subordinadas a um prazo de decadência.
Por
fim o autor afirma que não poderiam as ações declaratórias estar ligadas a
prazos prescricionais ou decadenciais. Conclui, outrossim, que tais ações são
perpétuas ou imprescritíveis[5],
visto que a certeza jurídica não se subordina a limites temporais.
A
teoria do autor não pode ser ignorada. Suas conclusões elevaram o nível da discussão
sobre decadência e prescrição. Mas, de acordo com as premissas desse trabalho, vamos
sair em defesa de que a constituição do crédito, bem como sua exigibilidade, é
um dever jurídico, e não do direito potestativo (faculdade). Mesmo não negando sua contribuição e
sabendo que no Direito Tributário muitos autores a prestigiam[6].
Cumpre-nos destacar a importante
contribuição dos teóricos do Direito Privado classificados como civilistas, mas, sobretudo, sabemos que o direito é uno e
indivisível e apenas sofre separação para aprofundamento do objeto de estudo. Partindo
dessa premissa, parece leviano dizer que prescrição e decadência no direito tributário
não se confundem com aquela positivada no direito privado.
Apesar
da proibição de limitação na definição, conteúdo e alcance dos institutos,
conceitos e formas positivadas pelo direito privado que enuncia os comandos do
artigo 110 do CTN, entendemos que não se aplica às normas referentes à
decadência e prescrição que não têm como objetivo limitar ou definir
competência tributária, a teor do citado artigo, e sim regulamentar o fim do
tempo no Direito para garantir segurança jurídica ao sistema que é instrumento
de harmonia e previsibilidade para as relações. Essa é a interpretação correta
do artigo 110, como arremata Heleno Taveira Tôrres[7]:
Contudo, no mais profundo equívoco,
muitos autores imaginam que este artigo serviria a uma interferência na interpretação
e aplicação das leis tributárias. Inversamente, presta-se, sim, aos limites da
intervenção legislativa no exercício de competências tributárias.
Desse modo, podemos afirmar, de
acordo com nossas premissas, que os institutos da decadência e da prescrição do
direito civil não possuem semelhança alguma com esses que aqui estamos
tratando.
Ademais
o art. 109 do CTN também esclarece que “os princípios gerais de direito privado
utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus
institutos, conceitos e formas, mas não
para definição dos respectivos efeitos tributários”. No direito tributário,
vale notar, existe apenas um denominador comum entre os dois institutos que irá
extinguir-se com a aplicação das normas de decadência e prescrição, qual seja, o
crédito tributário, assim haverá extinção
do crédito tributário e de toda a
obrigação tributária, seja no instituto da decadência, seja no instituto da
prescrição, conforme o art. 156, V do CTN. Efeito distinto do estabelecido pelo
Direito Civil.
Vale
aqui retomar os comentários perfilhados na parte geral desta obra, em que
afirmamos que a figura da decadência e da prescrição não é um conceito
lógico-jurídico, e sim jurídico positivo[8]. O
efeito extintivo foi positivado para garantir segurança jurídica ao sistema,
enfatizando seus efeitos de desaparecimento, fim, perda da juridicidade do
crédito tributário, deixando de ser crédito tributário.
No
direito civil a prescrição, por ser instituto de ordem pública, apresenta uma característica
notável: a renúncia da prescrição só pode ser efetuada depois de decorrido todo
o seu prazo e se não houver prejuízo de terceiros; o prazo de decadência pode
ser estabelecido também pela vontade das partes, tornando inclusive renunciável,
dentre outras[9]. Sem
mencionar disposições próprias como prescrição aquisitiva, em que os fatores de
inércia temporal geram uma aquisição de direito real, que não existe no Direito
Tributário.
Ademais,
a doutrina civilista classifica os prazos prescricionais em duas modalidades, a
saber: os ordinários (artigo 205 e 206 do Código Civil) e os especiais (são os
demais estabelecidos de acordo com a matéria com os quais se relacionam e os
demais disseminados em todo texto do Código Civil). Apenas a título de comentário,
nota-se que, merecidamente, a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que
instituiu o novo Código Civil, tornou o instituto mais objetivo e taxativo, mas
ainda assim sua complexidade supera àquela encontrada no direito tributário.
Enfim,
não há como negar a notória diferença entre os institutos da decadência e da
prescrição, considerando a definição do Direito Civil e do Direito Tributário. Igualmente
percebe-se quando a consideração das diferenças destaca o efeito extintivo
atribuído aos institutos que são conceitos jurídico-positivos como afirmamos ao
longo do texto e não possuem os mesmos efeitos comparando o direito civil e o
direito tributário por falta de positivação jurídica.
[1] LEAL, A. L. da
Câmara. Da prescrição e da decadência.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 10-137.
[2] MONTEIRO, Washington
de Barros. Curso de Direito Civil:
parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 287.
[3] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 4. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1974, p. 536.
[4] AMORIM FILHO, Agnelo.
Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar
as ações imprescritíveis. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 49, n. 300, p. 7-37, out. 1960, p. 9.
[5] Ibidem, p. 31.
[6] CARRAZZA, 2010, p.
344: “Só decai direitos potestativos, vale dizer, daqueles que a lei confere a
determinadas pessoas, para que, mediante declaração universal de vontade,
alteram situações jurídicas que envolvem terceiros”. E ainda, MACHADO, 2011, p.
220: “A distinção entre decadência e prescrição na Teoria Geral do Direito fica
mais clara quando partimos da distinção entre o direito potestativo e o direito
a uma prestação”.
[7] TÔRRES, Heleno
Taveira. Interpretação e integração das normas tributárias: reflexões críticas.
In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado
de Direito Constitucional Tributário: estudos em homenagem a Paulo de
Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 137.
[8] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1954, t. 6, p. 100.
[9] SOUZA FILHO, Luciano
Marinho de Barros e. Da prescrição e da decadência na cobrança de contribuições
previdenciárias decorrentes de reclamatórias e consignatórias trabalhistas. Revista Dialética de Direito Tributário,
São Paulo, n. 171, p. 71-78, dez. 2009, p. 72.