A falta de interesse processual e de argumentos que justifiquem a lesão ao
patrimônio público foram os principais argumentos usados pela Justiça Federal do
Distrito Federal nas nove sentenças favoráveis ao Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais (Carf) dadas na última semana em ações populares ajuizadas
contra decisões favoráveis a contribuintes. Somando todas as decisões, o Carf
acumula 21 vitórias.
Ajuizadas por um ex-procurador da Fazenda Nacional, as 59 ações questionam
decisões do Conselho — órgão paritário formado por membros oriundos do fisco
federal e da sociedade civil — favoráveis aos contribuintes, alegando que lesam
o erário. O ex-procurador também coloca os conselheiros no polo passivo dos
processos. O assédio preocupa os tributaristas que julgam no Carf, que já
buscaram apoio de entidades da advocacia e suspenderam algumas sessões.
Alguns deles, acompanhados pelo presidente do Conselho, Otacílio Cartaxo,
têm despachado com juízes sobre a situação. A Advocacia-Geral da União assumiu a
defesa do órgão e de seus membros em juízo. Já a Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional, que faz parte da AGU, emitiu pareceres favoráveis às ações.
Na última quarta-feira (20/2), o Instituto dos Advogados de São Paulo e o
Movimento de Defesa da Advocacia enviaram ofício ao advogado-geral da União,
Luis Inácio Adams, elogiando a iniciativa de defender os conselheiros, e
afirmaram que estão acompanhando os casos de perto.
A decisão do juiz federal Gabriel José Queiroz Neto, titular da 1ª Vara
Federal do DF, mostra o entendimento adotado pela Justiça nos casos julgados até
o momento: “A inicial deve ser indeferida, uma vez que não há interesse
processual e há inépcia; a leitura da inicial não revela qualquer ato lesivo ao
patrimônio público, de tal maneira que da narração dos fatos não decorre
logicamente o pedido.” Segundo o juiz, a Ação Popular só é admissível quando
houver a pretensão de anular ato lesivo ao patrimônio público.
Cinco sentenças saíram nesta quinta-feira (21/2) envolvendo casos julgados
pelo Carf em favor das empresas Flint Group Tintas de Impressão; Usinas
Siderúrgicas de Minas Gerais; Minerações Brasileiras Reunidas; e Banco Santander
— todas assinadas pela juíza federal em auxílio na 16ª Vara do DF, Cristiane
Pederzolli Rentzsch. Também na quinta, a juíza Lana Lígia Galati julgou caso da
Itaú Seguros.
Quatro sentenças no mesmo sentido foram publicadas na sexta-feira (22/2),
sobre julgados em favor da Samraco Minerações e Lloyds TSB Bank PLC, julgadas
pelo juiz federal substituto Bruno César Bandeira Apolinário. A Ampla Energia e
Serviços teve decisão do Carf analisada pelo juiz federal substituto da 9ª Vara
do DF, Alaôr Piacini. Caso da Santa Marta Empreendimentos Imobiliários foi
julgado pela juíza Lana Lígia Galati.
Todas elas afirmam que a autora das ações, Fernanda Soratto Uliano Rangel —
mulher do ex-procurador Renato Chagas Rangel, expulso da PGFN acusado de se
apropriar de bens de devedores como honorários de sucumbência e condenado em
dois processos administrativos —, não alegou fraude de julgamento, corrupção ou
concussão dos conselheiros ou eventual desvio de poder praticado por eles. “Não
se pode anular um ato administrativo sob o fundamento de que houve erro na
aplicação da lei, sob o ponto de vista da autora. À míngua de ilegalidade, não
pode o Poder Judiciário anular atos da Administração, sob pena de interferir no
ser poder discricionário”, diz uma das sentenças.
Questionamentos ao Carf
Nas 59 Ações Populares, o
ex-procurador da Fazenda Nacional Renato Chagas Rangel questiona o mérito de
acórdãos do Carf que afirmam não serem devidos tributos de dezenas de empresas.
Rangel afirma que, como as empresas foram “livradas” de pagar impostos, a União
foi omissa em seu papel de arrecadar.
O ajuizamento dessas ações causou tumulto no Carf, a última instância
administrativa para discussões entre contribuintes e fisco federal. Nas últimas
semanas, conselheiros retiraram todos os processos de pauta, com receio de que
novas decisões a favor de contribuintes pudessem dar munições a novas
ações.
A decisão de parar as atividades veio depois de, em alguns casos, a Fazenda
ter se manifestado contra as decisões do Carf. Em pareceres, a Procuradoria da
Fazenda Nacional afirmou que, por mais que defenda a legitimidade do Carf, deve
defender também o crédito tributário. Atacou, portanto, o mérito das
decisões.
Houve uma contradição institucional, conforme apontado por especialistas
ouvidos pela ConJur. Eles explicam que, como o Carf é um órgão
do Ministério da Fazenda, seus posicionamentos representam o posicionamento do
próprio ministério. Em última análise, os dois são a mesma coisa.
Os pareceres da Fazenda foram duramente criticados. Não caberia, portanto,
parecer jurídico da PFN contra decisões do Carf. Segundo os especialistas, foi
como se a Fazenda tivesse falado contra sua própria decisão. “Parece que a
Fazenda quer ganhar todas”, disse à ConJur o professor Paulo de Barros
Carvalho.
Para evitar novos conflitos desse tipo, a Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional preferiu pedir ao advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, que
avocasse o processo e decidisse qual órgão da AGU faria a defesa do Carf. A
tarefa foi passada à Procuradoria-Geral da União, a PGU.
Segurança ameaçada
Tributaristas tomam as ações como
intimidações ao Conselho. "É um abuso do direito de ação e um assédio contra o
Carf que pode esvaziar o órgão", diz advogada Mary Elbe
Queiroz, que milita no Carf. Ela afirma que as ações "atingem
diretamente a imagem do órgão" e que os conselheiros pararam porque "estão sem
garantias".
Chamado a dar parecer no caso, o tributarista Ives Gandra da Silva
Martins chamou as ações de “absurdas” e “sem a menor condição de
prosperar”. Ele conta nunca ter visto episódio semelhante em seus 55 anos de
experiência na advocacia e no magistério. "São ações que não têm substância
nenhuma, mas que atacam a honorabilidade do Carf e de seus conselheiros. E isso
é muito ruim para a própria instituição, já que o órgão é formado por membros da
Receita e representantes dos contribuintes", avalia. E mostra preocupação: "Por
que um professor, ou advogado de renome, se sujeitaria a trabalhar de graça como
conselheiro se está sujeito a uma ação popular que questiona sua higidez, sua
idoneidade?"
Paulo de Barros, que também deu parecer nos processos, concorda. Ele afirma
que as ações são “completamente sem propósito”. “Entrar com a ação popular é
possível, é um direito de todo mundo. Mas a Fazenda subscrever essa atitude é um
atentado à segurança jurídica e à estabilidade do governo, além de ir
completamente contra o Código Tributário Nacional”, diz.
Na opinião do professor Eurico de Santi, outro que emitirá
parecer, o episódio pode ser virtuoso para o Carf, apesar das turbulências.
Reforçaria, segundo ele, o papel e a importância institucionais do órgão, que é
quem dá a última palavra administrativa sobre a existência ou não de crédito
tributário. “É um órgão sério e com a expertise para tratar de crédito
tributário.”
Para Luís Eduardo Schoueri, professor da USP, caso as
ações tenham sucesso, a segurança jurídica da atuação administrativa
desaparecerá. “Como posso pensar que a Fazenda se mostrou contrária a uma
decisão do próprio Ministério da Fazenda? A administração pública é uma coisa
só”, diz.
O mesmo pensa o também professor da USP Heleno Taveira
Torres. Ele afirma que “a ordem jurídica não pode servir de instrumento
para interesses de vingança privada”. Para ele, interessa à sociedade e ao
próprio governo repudiar essas ações. “Está em jogo a credibilidade do Carf como
tribunal administrativo independente.”
Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, do Bichara, Barata
& Costa Advogados, é preciso avaliar as consequências econômicas de se ter o
Carf parado. “Com as sessões do Carf suspensas, centenas de processos deixaram
de ser julgados e milhões de reais tiveram sua arrecadação postergada”,
diz.
O advogado Gilberto Fraga, vice-presidente da Comissão de
Direito Tributário da OAB do Rio de Janeiro, afirma que o Judiciário não pode se
debruçar sobre o tema, sob pena de abrir o precedente de que, a qualquer decisão
pró-contribuinte do Carf, caiba uma ação popular. “Imagine como ficaria o Carf
se a todo momento em que desse razão ao contribuinte soubesse que seria alvo de
ação. Essas ações são uma maneira enviesada de ressuscitar o crédito tributário,
quando o STJ já decidiu que a decisão administrativa, quando contra a Fazenda, é
definitiva”, afirma.
Caminho certo
Os tributaristas também elogiaram o que
vem decidindo a Justiça Federal. Ao comentar uma das primeiras decisões, o
advogado Luiz Paulo Romano, do Pinheiro Neto Advogados, afirmou
que "o que chama atenção é que poderia ter sido bem rasa, mas acabou
aprofundando em temas muito importantes".
Falando sobre a mesma sentença, o tributarista Dalton
Miranda, do Trench, Rossi e Watanabe Advogados, diz que "o juiz foi
preciso e, com respaldo na legislação e na jurisprudência do STJ, definiu
claramente que as decisões proferidas pelo Carf são sim definitivas naquilo que
diz respeito à administração fazendária".
O presidente do Movimento de Defesa da Advocacia, Marcelo
Knopfelmacher, também elogiou. "A sentença reafirma a autoridade das
decisões do Carf. Se as ações populares atacam apenas o mérito das decisões,
como de fato ocorreu na hipótese, a sentença está corretíssima e serve de
paradigma para os demais casos."
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Santander.
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Seguros.
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Ampla.
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Samarco.
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Lloyds.