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terça-feira, 19 de março de 2019

Uma estranha tributação de rendimentos inexistentes

Consultor Jurídico - 13.03.2019

Por Hugo de Brito Machado Segundo

Paulo Ferreira possui dois imóveis urbanos. Em um deles, reside com esposa e filhos. O outro está desocupado. Comprou como investimento, mas o mercado mudou. Até tentou alugá-lo, mas não está fácil. Nesse cenário, Paulo se sensibiliza com a situação de uma irmã, em dificuldades e recentemente despejada do imóvel onde morava, e a ela cede o seu imóvel até então desocupado, gratuitamente. Acredita estar fazendo uma boa ação ao permitir que a irmã mais velha, que tanto o acolheu na infância, tenha agora onde morar, pelo menos até que sua situação financeira melhore.

Nos anos subsequentes, ao preparar sua declaração de Imposto de Renda, Paulo inclui todos os rendimentos recebidos, os quais são normalmente submetidos à tributação. Mas, mesmo assim, algum tempo depois é surpreendido com um lançamento feito pela Receita Federal, que lhe exige o imposto incidente sobre os aluguéis que não recebeu em relação ao imóvel cedido gratuitamente à irmã. Certo de haver um equívoco, Paulo questiona a fiscalização, comprovando a gratuidade da cessão. O Fisco, porém, insiste na obrigatoriedade de se pagar o imposto, invocando para tanto o artigo 41, parágrafo 1º, do Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 9.580/2018), que na verdade reproduz o disposto no artigo 23, VI, da Lei 4.506/64, assim:

§ 1.º Na hipótese de imóvel cedido gratuitamente, constitui rendimento tributável na declaração de ajuste anual o equivalente a dez por cento do seu valor venal, ou do valor constante da guia do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU correspondente ao ano-calendário da declaração, ressalvado o disposto na alínea “b” do inciso VII do caput do art. 35 (Lei nº 4.506, de 1964, art. 23, caput, inciso VI).

Veja-se: não se está diante de situação na qual há suspeita de que o imóvel teria sido alugado e o contribuinte estaria a omitir do Fisco os rendimentos relativos ao aluguel. Não se trata de presunção da ocorrência do fato gerador, a partir de fatos indiciários, aspecto que poderia ser resolvido no campo da prova. A própria norma se refere, textualmente, à cessão gratuita. Ou seja, ainda que inteiramente incontroversa a gratuidade da cessão, será devido o Imposto de Renda como se o contribuinte tivesse recebido aluguéis equivalentes a 10% do valor venal do imóvel.

A disposição remonta a 1964, mas, como não existe constitucionalização pelo mero decurso do tempo, é o caso de indagar: é constitucional exigir Imposto de Renda sobre valores reconhecidamente inexistentes?

De acordo com a Constituição Federal, a União tem competência para instituir impostos sobre, entre outras realidades, “renda e proventos de qualquer natureza” (CF/88, artigo 154, III). Nos termos do Código Tributário Nacional, o imposto somente poderá ser exigido diante da “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” de renda e proventos de qualquer natureza, sendo a primeira “o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”, e os segundos, “os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior” (CTN, artigo 43).

Nessa ordem de ideias, parece claro que na cessão gratuita não há aquisição de disponibilidade, seja econômica, seja jurídica, de qualquer acréscimo patrimonial decorrente do trabalho, do capital, ou da combinação de ambos. Aliás, não há ingresso algum, pois, como a própria legislação reconhece, a cessão é gratuita.

Poder-se-ia dizer, no caso, que o imóvel está à disposição do seu proprietário, que poderia, querendo, tê-lo alugado. Ao deixar de alugar para ceder à irmã, o contribuinte estaria abrindo mão, ou “dispondo”, do aluguel, sobre o qual teria, assim, “disponibilidade”. Esse seria um argumento em defesa da validade da mencionada hipótese de incidência do Imposto de Renda.

Não parece, contudo, que ele seja procedente. Não se pode comparar a situação de quem recebe uma importância em dinheiro, como ingresso novo em seu patrimônio e sem correspondente no passivo, e em seguida lhe dá uma destinação qualquer, ou mesmo o atira ao vento, com a de quem não chega a receber nada por ainda não fazer jus, juridicamente, a nada. Não se pode abrir mão do que não se possui. Lembre-se que o imóvel pode estar cedido gratuitamente até por não ter sido possível, por razões de mercado, alugá-lo.

Vale pensar, ainda, nos efeitos que referida hipótese de tributação poderia ter caso a ideia a ela subjacente — e o conceito de fato gerador que ela pressupõe — fosse adotada de maneira coerente em outras situações. Um advogado que patrocina os interesses de um colega sem nada cobrar, por razões de cortesia, ou cujo escritório possua algumas causas pro bono, teria de pagar o Imposto de Renda sobre os honorários que sequer chegou a negociar, e jamais cogitou de cobrar, dos quais, portanto, não tem disponibilidade, quer econômica, quer jurídica? O mesmo seria aplicável ao médico que em alguns dias atende pessoas carentes gratuitamente em seu consultório? E, em sendo tudo isso possível, uma doação de imóveis seria tributável pelo imposto sobre doações, ou pelo ITBI, visto que haveria um preço possível do qual o doador estaria abrindo mão? Poderia o legislador inventar que nesse caso também há renda, correspondente ao valor não recebido em virtude da doação?

O contrassenso revelado por tais exemplos parece dispensar considerações adicionais. Não se pode confundir a disponibilidade do contribuinte sobre um acréscimo patrimonial com a disponibilidade do contribuinte sobre seu trabalho ou os seus bens, os quais em tese podem, dependendo de como sejam utilizados, gerar para ele algum rendimento, ou não. Do contrário, até aquele que, podendo trabalhar, opta por não fazê-lo, teria de pagar o Imposto de Renda sobre os salários que “deixou de receber”. Criar-se-iam, com isso, impostos novos, a incidir sobre a generosidade, sobre o desemprego, ou até sobre o ócio. Os impostos seriam devidos sempre que o seu fato gerador, podendo ter ocorrido, não se verifique em virtude de escolha prévia do contribuinte, deitando por terra a própria ideia de liberdade. Mesmo pondo de lado todas as questões relacionadas à interpretação das normas de competência e às expressões nelas utilizadas, não parece, em tais situações, sequer haver capacidade contributiva que autorize tamanho desprezo à liberdade do sujeito passivo de definir o que fazer com sua vida e com o seu patrimônio.

Minhas publicações em revistas, livros e sites:

38 - A Responsabilidade Tributária "Pessoal" Prevista no Código Tributário Nacional. in Revista Pensamento Jurídico - São Paulo - vol. 16, nº 1, jan./abr. 2022 . p. 90 - 123 - ISSN 321-1039-1 ______ 37. Arbitragem em Matéria Tributária. in Revista de Direito Tributário Contemporâneo. Ano 7. Vol. 32. jan./mar.2022. Coordenação Paulo de Barros Carvalho. p. 293 - 307. ISSN 2525-4626 ______ 36 - Reserva de Lei Complementar para Dispor sobre Prescrição Intercorrente em Matéria Tributária: Análise do RE 636.562-SC. in XVII Congresso Nacional de Estudos Tributários: Meio Século de Tradição. Coordenação Paulo de Barros Carvalho; Organização Priscila de Souza. 1ª ed. São Paulo: Noeses: IBET, 2021. p. 1247-1258 - ISBN 978-65-89888-29-1 ______ 35 - A Função da Lei Complementar 116/2003 e Dispor Sobre Conflito de Competência entre os Municípios. in Direito Constitucional Tributário e Tributação Municipal: Estudos em Homenagem à Professora Elisabeth Nazar Carrazza. Organizadore: Anselmo Zilvet Abreu, Carlos Augusto Daniel Neto, Marcio Cesar Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 505-516 - ISBN 97-8655-575-076-8. ______ 34 - A Responsabilidade Tributária dos Administradores e dos Sócios. in Compêndio de contabilidade e direito tributário: volume I: contabilidade. Organizadores: Luis Alberto Buss Wulff Junior, Luiz Alberto Pereira Filho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 43-51 - ISBN 978-65-5510-551-3. ______ Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário como Hipótese de Suspensão do Prazo de Prescrição. in Estudos de Direito Tributário: homenagem a José Eduardo Soares de Melo. Organização de Eduardo Soares de Melo. São Paulo: Malheiros, 2020. p. 697-706 - ISBN 978-85-392-0459-5.

32 - Autocomposição na Administração Pública em Matéria Tributária. Revista de Doutrina Jurídica - RDJ (online), v. 111, p. 186-363, 2020 - ISS 2675-9640 - link: https://revistajuridica.tjdft.jus.br/index.php/rdj/article/view/578

31- Breves Comentários do Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre Prescrição Intercorrente em Matéria Tributária. in O Supremo Tribunal de Justiça e a aplicação do direito: estudos em homenagem aos 30 anos do Tribunal da Cidadania. Coordenação Carlos Alberto de Moraes Ramos Filho e Daniel Octávio Silva Marinho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p.581-591 - INSB 978-65-5510-146-1

30- La Posibilidad de Soluciones Alternativas De Controversias en el Derecho Tributario. in Revista Estudios Privados ZavaRod Institute. Ano VII – nª 07/2020 – Segunda Época – pág. 112-120; Versión Digital www.zavarod.com.

29- La Responsabilidad Tributaria del Administrador de Fondos de Inversión. in Revista Estudios Privados ZavaRod Institute. Ano VII – nª 07/2020 – Segunda Época – pág. 209-221; Versión Digital www.zavarod.com.

28- El Problema que Provoca la Modulación de los Efectos de las Decisiones Emitidas en el Control de Constitucionalidad en Materia Tributaria. in Revista Estudios Privados ZavaRod Institute. Ano VII – nª 07/2020 – Segunda Época – pág. 300-313; Versión Digital www.zavarod.com.

27. A execução contra a Fazenda Pública fundada em título executivo extrajudicial de acordo com o art. 910 do Código de Processo Civil (co-autoria com Ana Paula Martinez). in Processo de Execução e Cumprimento de Sentença: temas atuais e controvertidos. Coordenação Araken de Assis e Gilberto Gomes Bruschi. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 919-924 - ISBN 978-65-5065-285-2.

26. Modulação dos Efeitos da Decisão: Razões de (in)Segurança Jurídica. in Texto e Contexto no Direito Tributário. Coordenação Paulo de Barros Carvalho; Organização Priscila de Souza. 1ª ed. São Paulo: Noeses: IBET, 2020. p. 1113-1123 - ISBN 978-65-992879-3-0

25. O grave Problema da Técnica de Modulação dos Efeitos das Decisões Proferidas em Controle de Constitucionalidade em Matéria Tributária. in Novos Rumos do Processo Tributário: Judicial, Administrativo e Métodos Alternativos de Cobrança do Crédito Tributário, vol.1; coordenação de Renata Elaine Silva Ricetti Marques e Isabela Bonfá de Jesus. São Paulo: Editora Noeses,2020, p. 767-783.

24. Constructivismo Lógico Semântico. in Constructivismo lógico-semântico: homenagem aos 35 anos do grupo de estudos de Paulo de Barros Carvalho. Coordenação de Paulo de Barros Carvalho; organização Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2020. p. 233-251 - ISBN 978-85-8310-143-7

23. Responsabilidade Tributária do Administrador de Fundos de Investimento. in Constructivismo lógico-semântico e os diálogos entre a teoria e prática. Coordenação Paulo de Barros Carvalho; organização: Priscila de Souza. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2019. p.1095-1110 - ISBN 978-85-8310-142-0

22. A possibilidade de soluções alternativas de controvérsias no Direito Tributário in Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu. Ano 6 - nº 07 - 1º semestre de 2019 - ISBN 2358-6990 - - https://www.usjt.br/revistadireito/numero-7.html

21. Prazo de Decadência das Contribuições Previdenciárias Executadas de Ofício Na Justiça do Trabalho. in 30 anos da Constituição Federal e o Sistema Tributário Brasileiro. Organização Priscila de Souza; Coordenação Paulo de Barros Carvalho. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 987 - 1009.

20. Nova interpretação do STJ sobre prescrição intercorrente em matéria tributária in conjur.com.br (28.11.2018)

19. Uma Nova Visão Para um Velho Assunto: Decadência e Prescrição no Direito Tributário, in Normas Gerais de Direito Tributário: Estudos em Homenagem aos 50 anos do Código Tributário Nacional. Coord. Carlos Alberto de Moraes Ramos Filho. Curitiba: Editora CRV, 2016. p. 537-549.

18. A Lei Complementar e a Função de Solucionar Conflito de Competência em Matéria Tributária. in 50 Anos do Código Tributário Nacional. Org. Priscila de Souza; Coord. Paulo de Barros Carvalho. 1 ed. São Paulo: Noeses: IBET, 2016. p.1087-1098.

17. Prescrição, Decadência e base de cálculo das contribuições executadas de ofício na Justiça do Trabalho. In: Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, et. al.(Org.). PRODIREITO: Direito Tributário: Programa de Atualização em Direito: Ciclo 2. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2016. p. 47-81. (Sistema de Educação Continuada a Distância, v. 2).

16. A Cobrança do Crédito Tributário e os Conflitos que podem ser Solucionados no âmbito do Processo Administrativo Tributário. Revista Sodebras - Soluções para o desenvolvimento do País. Volume 11 – n. 132 – Dezembro/2016. p. 25-29.

15. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol.02. ano 1.p.197-209. São Paulo: ed. RT, set-out.2016.

14. O Direito à Repetição do Indébito do ICMS: Aplicação do Art. 166 do CTN. In: Betina Treiger Grupenmacher; Demes Brito; Fernanda Drummond Parisi. (Org.). Temas Atuais do ICMS. 1ed.São Paulo: IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda, 2015, v. 01, p. 01-494.

13.Uma nova visão sobre Decadência e Prescrição no Direito Tributário. In: Fernanda Drummond Parisi; Heleno Taveira Torres; José Eduardo Soares de Melo. (Org.). Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Professor Roque Antônio Carrazza. 1ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2014, v. 1, p. 612-626.

12.O início da Fiscalização como Demarcação do Prazo de Decadência do Crédito Tributário. In: Paulo de Barros Carvalho; Priscila de Souza. (Org.). O Direito Tributário: Entre a Forma e o Conteúdo. 1 ed.São Paulo: Editora Noeses, 2014, v. 1, p. 1-1158.

11. O Supremo Tribunal Federal: Órgão Jurídico (não político). Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, http://www.usjt.br/revistadire, p. 01 - 249, 01 mar. 2014.

10.Constituição Definitiva do Crédito Tributário. In: Paulo de Barros Carvalho. (Org.). X Congresso Nacional de Estudos Tributários: Sistema Tributário Brasileiro e as Relações Internacionais. 1ed.São Paulo: Editora Noeses, 2013, v. 1, p. 1-1160.

9.Impossibilidade de incidência nas importações de serviço. In: Alberto Macedo e Natalia De Nardi Dacomo. (Org.). ISS Pelos Conselheiros Julgadores. 1ed.SÃO PAULO: Quartier Latin, 2012, v. 1, p. 429-438.

8. Penhora on line em Matéria Tributária, aplicação do art. 185-A do Código Tributário Nacional - CTN. Enfoque Jurídico - Ano I - Edição 2 - Abril/2011, São Paulo, p. 8 - 8, 01 abr. 2011.

7.Norma Jurídica: paralelo entre a teoria normativista- positivista clássica e a teoria comunicacional. In: Gregorio Robles; Paulo de Barros Carvalho. (Org.). Teoria Comunicacional do Direito: Diálogo entre Brasil e Espanha. 1ed.São Paulo: Noeses, 2011, v. 1, p. 3-649.

6. Lacunas no Sistema Jurídico e as Normas de Direito Tributário. Revista de Direito Tributário 109/110. Malheiros Editores, 2010.

5. Meio Eletrônico Utilizado para garantir a efetividade na cobrança do crédito tributário: penhora on line. Direito Tributário Eletrônico, Editora Saraiva, 2010.

4. La modulación de efectos de la decisión en el control de constitucionalidad brasileña. Revista Opciones Legales -Fiscales, Edição Especial, Junio 2010, México. E edição normal de venda, México, junio 2010.

3. Tradução e Direito:Contribuição de Vilém Flusser e o dialogismo na Teoria da Linguagem. Vilém Flusser e Juristas. Editora Noeses, 2009.

2. Modulação dos efeitos da decisão em matéria tributária: possibilidade ou não de “restringir os efeitos daquela declaração”. Revista Dialética de Direto Tributário (RDDT). v.170, p.52-63, 2009.

1. Concessão de Medida Cautelar em Controle de Constitucionalidade Concentrado e seus Efeitos em Matéria Tributária. Revista da Escola Paulista de Direito. Editora Conceito, 2009. v.7, p.05 - 449.

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